Amores e Amoras, desejo que estejam bem.
Vamos iniciar o último bimestre de vocês no Zanei. Espero que se empenhem e que corram atrás dos prejuízos.
Devolutivas no meu e-mail até 30/10 profaisabel13@gmail.com
Conto com vocês!!
Dos livros e editores
A cabeça de um escritor é um sítio inabitável, cheio de sombras negras que se devoram umas às outras, remorsos, fantasmas, dores, insignificâncias em que não reparamos e ele repara, sensações, luzes, criaturas sem nexo. Usam o papel para ordenar este caos, vertebrar o desespero, dar ao ilógico uma coerência lógica e mostrar o nosso retrato autêntico em cacos de espelho, fundos de poço trémulos, superfícies convexas em que temos de emagrecer por nossa conta. Não se pode estender a mão a quem lê, tem de se caminhar sozinho num nevoeiro aparente em que, a pouco e pouco, as coisas se arrumam nos seus lugares. Em nenhum bom livro há personagens e história: quando muito aparência de personagens e história, usadas para tornar mais clara a vertigem do que somos. Tudo se passa no interior do interior e, portanto, não devia haver cursos de escrita criativa (um paradoxo nos termos) mas de leitura criativa. Conheço menos bons escritores do que bons leitores, um bom leitor é uma espécie muito rara. Um autor do século dezanove dedicava os seus trabalhos aos felizes poucos, expressão roubada a Shakespeare (we few, we happy few, we band of brothers) capazes de nadarem ao seu lado em águas muito escuras e de regressarem à tona de mãos cheias. Um livro é mais uma orelha do que uma voz onde, no fim de contas, é o bom leitor quem conversa. O livro escuta. As páginas são ouvidos pacientes que nos guiam através da liberdade do silêncio, onde as nossas frases se refletem e regressam com um sentido novo. O bom leitor só recebe na medida em que dá e a qualidade da obra depende desta troca constante, do fluxo e refluxo das emoções partilhadas. Temos de ser um agente ativo do livro, fazê-lo nosso até que se torne, como queria Rilke de quem não sou admirador, exceto em raras passagens das Elegias, sangue, olhar e gesto. Se não for assim é uma comédia de enganos, um passatempo inócuo como quase tudo o que em Portugal se impinge, porque a maior parte dos editores ou são ignorantes ou são vigaristas, oferecendo ao público pacotilha impressa: um bom editor, tal como um bom leitor, é mais raro que um bom livro. Uma editora comercialmente bem sucedida é má, ou então tem de fazer compromissos. (…) O argumento, temos de pôr as pessoas a ler é idiota: o que temos é de ensinar as pessoas a ler. Até Lenine compreendia isto, ao afirmar que a arte não tem 3 de descer ao povo, é o povo que tem de subir à arte. (…) Se tivermos lado a lado, à nossa frente, Camões e o jornal, a tendência imediata é pegar no jornal, mas o jornal desaparece amanhã e Camões fica. Chamo jornalismo, explicava Gide, ao que é menos interessante amanhã do que hoje. E depois a Arte não é um desporto de competição: o editor que ponha numa cinta, por exemplo, cem mil exemplares vendidos, ou julga falar de sabonetes ou não é um editor. Se o livro for bom há de vender muito mais do que isso: quanto terá vendido Ovídio até hoje? É apenas uma questão de tempo, porque os bons leitores existirão sempre, ainda que poucos. O que me aborrece na Arte são os comerciantes que giram em volta dela, sem lhe tocar, porque tiram o seu alimento do efémero. Faz pouco, comecei uma biblioteca na empresa onde estou. Tolstoi foi o primeiro: ao receber o livro impresso reparei que as últimas três páginas eram propaganda a lixo. Como se pode, no fim de um livro de Tolstoi, fazer aquilo? Desonestidade? Ignorância? (…) Tolstoi de mistura com livros de cozinha e ficções. Recomecei a coleção: até agora não repetiram a indignidade. Pergunta: − Como vão os livros da biblioteca? Resposta: − Pingam e ainda bem que pingam. Se vendessem às grosas é que eu ficava alarmado. Os bons livros são para pingar eternidade fora: o Mondego começa gota a gota; a água suja basta virar o balde e encharca-nos. A água do balde acaba logo. O Mondego não tem princípio nem fim. − Pingam: e que maravilha pingarem. À força de pingarem hão de engrossar irresistivelmente, enquanto os baldes se enferrujam, amolgados, num canto do jardim.
António Lobo Antunes, in Visão, 19.08. 2010
I. Responda brevemente às seguintes questões:
1. Explique por palavras suas, o sentido das seguintes expressões.
a) sítio inabitável;
b) o livro escuta;
c) fluxo e refluxo das emoções partilhadas;
d) passatempo inócuo;
e) tirar o seu alimento do efêmero.
2. Segundo o cronista, qual a função do leitor?
3. Qual a atitude do cronista diante do jornalismo?
4. De acordo com o texto, que influência pode ter um editor nos hábitos de leitura do público?
5. Explique a reação do autor face ao argumento de que “temos de pôr as pessoas a ler” e relacione-a com a convicção de que “não devia haver cursos de escrita criativa mas de leitura criativa”.
6. Explique e discuta o sentido da primeira frase do texto: “A cabeça de um escritor é um sítio inabitável, cheio de sombras negras que se devoram umas às outras, remorsos, fantasmas, dores, insignificâncias em que não reparamos e ele repara, sensações, luzes, criaturas sem nexo.”
II. Faça um comentário sobre a frase do texto, em cerca de 100 palavras.
“Os bons livros são para pingar eternidade fora: o Mondego começa gota a gota; a água suja basta virar o balde e encharca-nos. A água do balde acaba logo. O Mondego não tem princípio nem fim.”
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